A DOR DA PERDA
Entrevista com a psicóloga Denise Delpizzo sobre psicoterapia de perdas e luto.
Onde está a agressão da perda, na perda em si ou no fato de não ter levado em conta que haveria uma perda em algum momento da vida?
A perda é devastadora por uma conjunção de fatores: ela agride pq modifica uma relação forçosamente, contrariamente a sua vontade, ela leva alguém que era "seu" e não ensina a continuar a viver sem esse alguém...
Ao longo da vida sofremos várias perdas, e todas, ao seu tempo, são significativas: nós sabemos o que é a perda desde o momento que perdemos o ambiente seguro do ventre materno, perdemos o colo materno, perdemos as amizades ao longo da infância e adolescência, e assim por diante...e sabemos da fragilidade da vida...mas a morte se tornou um tabu para nós e fingimos que ela não faz parte da vida, que nunca vamos morrer ou ver alguém que nos é caro morrer. Na verdade é uma negação, evitamos pensar e nos darmos conta da perda, negando sua inevitabilidade, sonhando que assim estaremos (nós e os nossos) a salvo dela. É um pensamento infantilizado: se não penso nisso, isso não existe...é uma negação, uma fuga.
Quando você fala “a morte se tornou um tabu” remete a uma construção cultural. Ou seja, é possível mudar essa relação ensinando que a morte é absolutamente natural, mesmo que “prematura”?
Exatamente isso, esta construção cultural teve alicerce no antropocentrismo, qdo o homem passou a ser o centro do universo e a entender-se como o sujeito de sua vida e história. Até aí tudo bem, mas um viés desta percepção, nos levou a entender que, como "donos" de nossas histórias, inventores e construtores do mundo, das bombas aos foguetes, dos prédios mais altos aos computadores mais potentes, de todos os remédios e drogas para as curas do mundo, conseguiríamos também dominar a morte. E o avanço da ciência e da medicina, contribuiu para que uma fantasia de imortalidade se instalasse na nossa cultura. Uma reportagem de capa da Revista Superinteressante de 2011 tinha como chamada: "Já nasceu a criança que viverá mais de 120 anos"...
Ou seja, nos preparamos 24 horas por dia para viver eternamente, numa constante não aceitação da finitude, que pode acontecer num lapso de segundo.
Essa relação inadequada que construímos com a morte faz parte da nossa forma de pensar e agir atual, contemporânea. As pessoas se esquivam de falar sobre o tema, como se fosse uma maldição, como se "pegasse". O que precisamos entender é que a morte faz parte da vida, mesmo sabendo que não é sem dor e tristeza que passamos por uma experiência de perda. É importante que as pessoas voltem a aceitar a finitude, a morte, para que o luto volte a ser aceito nessa nossa sociedade "de consumo", onde reina a ditadura da felicidade, do produzir e do acumular, e do gozar a vida. Onde a dor, a tristeza e o recolhimento não tem vez…
As crises me parecem ser mais agudas quando a morte vem na forma de um acidente, como sendo uma ruptura que foge da normalidade de uma morte pela velhice. O 'tipo' de morte faz diferença de fato?
Certamente o processo de luto tende a ser menos doloroso numa situação de morte na velhice, mas...tudo depende do ponto de vista de quem sofre este luto.
Uma parábola narra o seguinte: seguia o Dervixe pelo seu longo caminho peregrino, qdo avistou uma casa na beira da estrada. Ali, ele se depara com uma família numerosa e pede um prato de comida em troca de um “bom presságio”. A grande família reparte sua parca refeição com o Dervixe, que, após saciado, ao se despedir, diz:
“Que morra o avô, que morra o pai, que morra o filho.”
Ou seja, que a perda seja aquela que segue o curso natural da vida, ao envelhecer...que a morte aconteça na velhice, sem que aconteça a interrupção da vida na infância, na adolescência, ou enquanto adulto jovem.
A idade é um dos fatores determinantes do luto e afeta significativamente a intensidade das reações à perda. Uma morte prematura, repentina e inesperada tende a desencadear um luto mais penoso, denso e doloroso. É o que podemos considerar como “morte traumática”, que comumente vai acarretar um luto complicado, com mais sintomas de problemas de saúde, mais eventos depressivos, mais sentimentos de culpa ou de raiva, enfim..., mais problemas na elaboração do luto.
Além do fator idade, há outros fatores que determinam a intensidade do luto: o grau de parentesco com aquele que morreu, o gênero (masc. ou fem.) de quem sofre o luto, a idade de quem sofre o luto, o grau de apego com aquele que morreu, o tipo de morte, a causa da morte, a existência de perdas anteriores não elaboradas, perdas múltiplas, e outros fatores que podem ser considerados fatores de risco ou de proteção para o enlutado.
Qual a diferença entre os gêneros?
Bem, as respostas masculinas e femininas à perda são diferentes e devem ser respeitadas.
As mulheres (geralmente) experienciam relativamente menos conflitos entre sua criação tradicional e as exigências do luto (ex: expressão da emoção, aceitação da introspecção/fragilidade temporária, confiar nos outros).
Os homens, pelo condicionamento social masculino, experimentam grande conflito em se expor emocionalmente, e por isso tendem a processar o luto de modo mais “instrumental”.
Assim, a diferença básica entre o processo de luto masculino e feminino se dá na manifestação do pesar: enquanto a mulher tende a se manifestar de modo mais intuitivo, através de buscas, apoios, religiosidade, homenagens, etc..., o homem manifesta de modo mais instrumental, através de atos, ações, trabalho, atividades... São modos diversos, diferentes estratégias de enfrentamento da perda. A mulher utilizando-se mais da emoção e o homem utilizando-se mais da ação.
Poderíamos dizer que a mulher se relaciona mais objetivamente com luto e o homem de forma indireta?
O luto é, talvez, o acontecimento vital mais “grave” que uma pessoa pode experienciar. E a dinâmica através da qual ela vai processar a dor do luto vai favorecer ou atrapalhar o desenrolar deste luto.
Na mulher, esta dinâmica se dá mais intuitivamente, se deixando entrar em contato com a tristeza, a dor, a falta...de modo que o curso natural do processo se efetiva.
No homem, geralmente há uma repressão de sentimentos e lamentos, buscando uma ocupação/substituição imediata na intenção de suprimir a dor e a tristeza. Em função deste estilo, há uma tendência maior de homens enlutados desenvolverem doenças ou agravarem doenças anteriores (sistema imunológico, cardiovascular, etc...), bem como de abusar de substâncias como álcool ou drogas.
Mas veja, estes padrões de gênero (masculino/feminino) não são absolutos. Pode haver mulheres que utilizam um padrão instrumental (dito masculino) no enfrentamento do luto, e homens que utilizam um padrão intuitivo (dito feminino). Há uma regra geral, um padrão, mas que como toda regra, tem suas exceções.
Onde está a agressão da perda, na perda em si ou no fato de não ter levado em conta que haveria uma perda em algum momento da vida?
A perda é devastadora por uma conjunção de fatores: ela agride pq modifica uma relação forçosamente, contrariamente a sua vontade, ela leva alguém que era "seu" e não ensina a continuar a viver sem esse alguém...
Ao longo da vida sofremos várias perdas, e todas, ao seu tempo, são significativas: nós sabemos o que é a perda desde o momento que perdemos o ambiente seguro do ventre materno, perdemos o colo materno, perdemos as amizades ao longo da infância e adolescência, e assim por diante...e sabemos da fragilidade da vida...mas a morte se tornou um tabu para nós e fingimos que ela não faz parte da vida, que nunca vamos morrer ou ver alguém que nos é caro morrer. Na verdade é uma negação, evitamos pensar e nos darmos conta da perda, negando sua inevitabilidade, sonhando que assim estaremos (nós e os nossos) a salvo dela. É um pensamento infantilizado: se não penso nisso, isso não existe...é uma negação, uma fuga.
Quando você fala “a morte se tornou um tabu” remete a uma construção cultural. Ou seja, é possível mudar essa relação ensinando que a morte é absolutamente natural, mesmo que “prematura”?
Exatamente isso, esta construção cultural teve alicerce no antropocentrismo, qdo o homem passou a ser o centro do universo e a entender-se como o sujeito de sua vida e história. Até aí tudo bem, mas um viés desta percepção, nos levou a entender que, como "donos" de nossas histórias, inventores e construtores do mundo, das bombas aos foguetes, dos prédios mais altos aos computadores mais potentes, de todos os remédios e drogas para as curas do mundo, conseguiríamos também dominar a morte. E o avanço da ciência e da medicina, contribuiu para que uma fantasia de imortalidade se instalasse na nossa cultura. Uma reportagem de capa da Revista Superinteressante de 2011 tinha como chamada: "Já nasceu a criança que viverá mais de 120 anos"...
Ou seja, nos preparamos 24 horas por dia para viver eternamente, numa constante não aceitação da finitude, que pode acontecer num lapso de segundo.
Essa relação inadequada que construímos com a morte faz parte da nossa forma de pensar e agir atual, contemporânea. As pessoas se esquivam de falar sobre o tema, como se fosse uma maldição, como se "pegasse". O que precisamos entender é que a morte faz parte da vida, mesmo sabendo que não é sem dor e tristeza que passamos por uma experiência de perda. É importante que as pessoas voltem a aceitar a finitude, a morte, para que o luto volte a ser aceito nessa nossa sociedade "de consumo", onde reina a ditadura da felicidade, do produzir e do acumular, e do gozar a vida. Onde a dor, a tristeza e o recolhimento não tem vez…
As crises me parecem ser mais agudas quando a morte vem na forma de um acidente, como sendo uma ruptura que foge da normalidade de uma morte pela velhice. O 'tipo' de morte faz diferença de fato?
Certamente o processo de luto tende a ser menos doloroso numa situação de morte na velhice, mas...tudo depende do ponto de vista de quem sofre este luto.
Uma parábola narra o seguinte: seguia o Dervixe pelo seu longo caminho peregrino, qdo avistou uma casa na beira da estrada. Ali, ele se depara com uma família numerosa e pede um prato de comida em troca de um “bom presságio”. A grande família reparte sua parca refeição com o Dervixe, que, após saciado, ao se despedir, diz:
“Que morra o avô, que morra o pai, que morra o filho.”
Ou seja, que a perda seja aquela que segue o curso natural da vida, ao envelhecer...que a morte aconteça na velhice, sem que aconteça a interrupção da vida na infância, na adolescência, ou enquanto adulto jovem.
A idade é um dos fatores determinantes do luto e afeta significativamente a intensidade das reações à perda. Uma morte prematura, repentina e inesperada tende a desencadear um luto mais penoso, denso e doloroso. É o que podemos considerar como “morte traumática”, que comumente vai acarretar um luto complicado, com mais sintomas de problemas de saúde, mais eventos depressivos, mais sentimentos de culpa ou de raiva, enfim..., mais problemas na elaboração do luto.
Além do fator idade, há outros fatores que determinam a intensidade do luto: o grau de parentesco com aquele que morreu, o gênero (masc. ou fem.) de quem sofre o luto, a idade de quem sofre o luto, o grau de apego com aquele que morreu, o tipo de morte, a causa da morte, a existência de perdas anteriores não elaboradas, perdas múltiplas, e outros fatores que podem ser considerados fatores de risco ou de proteção para o enlutado.
Qual a diferença entre os gêneros?
Bem, as respostas masculinas e femininas à perda são diferentes e devem ser respeitadas.
As mulheres (geralmente) experienciam relativamente menos conflitos entre sua criação tradicional e as exigências do luto (ex: expressão da emoção, aceitação da introspecção/fragilidade temporária, confiar nos outros).
Os homens, pelo condicionamento social masculino, experimentam grande conflito em se expor emocionalmente, e por isso tendem a processar o luto de modo mais “instrumental”.
Assim, a diferença básica entre o processo de luto masculino e feminino se dá na manifestação do pesar: enquanto a mulher tende a se manifestar de modo mais intuitivo, através de buscas, apoios, religiosidade, homenagens, etc..., o homem manifesta de modo mais instrumental, através de atos, ações, trabalho, atividades... São modos diversos, diferentes estratégias de enfrentamento da perda. A mulher utilizando-se mais da emoção e o homem utilizando-se mais da ação.
Poderíamos dizer que a mulher se relaciona mais objetivamente com luto e o homem de forma indireta?
O luto é, talvez, o acontecimento vital mais “grave” que uma pessoa pode experienciar. E a dinâmica através da qual ela vai processar a dor do luto vai favorecer ou atrapalhar o desenrolar deste luto.
Na mulher, esta dinâmica se dá mais intuitivamente, se deixando entrar em contato com a tristeza, a dor, a falta...de modo que o curso natural do processo se efetiva.
No homem, geralmente há uma repressão de sentimentos e lamentos, buscando uma ocupação/substituição imediata na intenção de suprimir a dor e a tristeza. Em função deste estilo, há uma tendência maior de homens enlutados desenvolverem doenças ou agravarem doenças anteriores (sistema imunológico, cardiovascular, etc...), bem como de abusar de substâncias como álcool ou drogas.
Mas veja, estes padrões de gênero (masculino/feminino) não são absolutos. Pode haver mulheres que utilizam um padrão instrumental (dito masculino) no enfrentamento do luto, e homens que utilizam um padrão intuitivo (dito feminino). Há uma regra geral, um padrão, mas que como toda regra, tem suas exceções.
Sobre Denise Delpizzo
Sou psicóloga e tenho formação em Psicoterapia de Perdas e Luto (ou Lutoterapia). Após passar por uma experiência pessoal de perda, percebi o quanto necessitamos de profissionais especializados para trabalhar especificamente com situações de perdas: aqui em SC, à época (5 anos atrás), havia apenas um profissional em Florianópolis que trabalhava especificamente com Lutoterapia...Desta forma, algum tempo depois, procurei a Dra. Maria Helena Bromberg, uma referência no país quando se fala em Lutoterapia, e me especializei nesta área.
Esta formação habilita ao apoio psicológico e aconselhamento em casos envolvendo situações de perda/luto. O suporte oferecido por esta psicoterapia específica trabalha no sentido de ajudar a elaborar o momento de crise desencadeado pela notícia de uma perda, que vai muito além da morte: uma doença crônica/grave é uma perda, uma amputação é uma perda, um aborto, uma separação, e, em níveis diferenciados, uma falência é perda, uma demissão ou aposentadoria é perda, e assim outras situações que desencadeiam um processo de luto e em que as pessoas tem que lidar com a tristeza, depressão, stress, dor e outras emoções, sentimentos e reações que decorrem deste momento complexo pelo qual estão passando.
Esta formação habilita ao apoio psicológico e aconselhamento em casos envolvendo situações de perda/luto. O suporte oferecido por esta psicoterapia específica trabalha no sentido de ajudar a elaborar o momento de crise desencadeado pela notícia de uma perda, que vai muito além da morte: uma doença crônica/grave é uma perda, uma amputação é uma perda, um aborto, uma separação, e, em níveis diferenciados, uma falência é perda, uma demissão ou aposentadoria é perda, e assim outras situações que desencadeiam um processo de luto e em que as pessoas tem que lidar com a tristeza, depressão, stress, dor e outras emoções, sentimentos e reações que decorrem deste momento complexo pelo qual estão passando.
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