QUEM QUER UM POVO IDIOTIZADO?
Uma das nossas muitas dificuldades sobre a vida é
entendermos, ou aceitarmos, que tudo tem seu lado bom, seu lado ruim, seu lado
inócuo, seu lado parcial, seu lado que pode ser bom para um e ruim para outro.
Enfim, nada é somente bom, somente ruim ou somente nada. Tudo pode ser usado,
ou manipulado, para uma coisa ou outra. Esse conflito, segundo me parece,
jamais terá fim. Conceba qualquer coisa e verás esses aspectos em si, inclusive no amor.
O conceito dado pelo
apóstolo Paulo, segundo a tradição cristã, é o ápice dessa situação: “O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o
amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência,
não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; não folga com a
injustiça, mas folga com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo
suporta. O amor nunca falha...” (I Coríntios 13:4-8). O texto fala de outros
aspectos, mas estes são o suficiente para esta análise.
Quando fala que é “sofredor” dá um impacto
gigantesco e negativo à primeira vista. Ou seja, não estaria no amor a alegria
ou felicidade. Seria o mesmo que dizer que quem está alegre não está amando.
Pelo contexto é possível supor que se refira à empatia. Sofre porque sente a
dor do outro ou algo semelhante. As demais características começam a embotar a
beleza do que seria o amor conforme algumas circunstâncias recorrentes na
história.
Imagine o domínio de um povo sobre o outro. O
primeiro não ama porque está invadindo e o segundo não busca a libertação porque ama. Ora, suponhamos que seja o cristianismo dominante e o
texto citado seja a “Lei”. Simplesmente sofrerão como cordeirinhos à espera de
uma ação diretamente divina, sem qualquer participação humana. Qualquer um que
se insurja, que ouse lutar, que queira devolver ao seu povo a condição primeira
incorrerá em grave erro. Pecará ao não cumprir a Palavra de Deus.
Não tão agressivo seriam as eleições. Como
escolher um novo governante se o voto em contrário a quem já está no poder
seria uma insurreição? Ora, se o prefeito foi ruim o amor não buscaria “os seus
interesses” e não se irritaria. O cristão, imbuído do respeito e obediência aos
preceitos de sua fé, “tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.” Além
disso, como poderia ir à prefeitura em busca de melhorias no posto de saúde?
Diria alguém que isso é válido porque é bem comum. Sim, bem comum, mas seria
igualmente de seu interesse e não estaria tudo sofrendo. Vale lembrar que
“suportar” neste texto vem suporte, de apoio.
Não seria esse texto contraditório? Não duvido. Mas
poderíamos arrazoar que o texto trata do amor, não do ser humano. Ainda mais
por dizer que o amor “nunca falha”. Se fosse assim ele estaria sentenciando que
o ser humano não seria capaz de amar. Também é possível, mas é óbvio que fala
do amor na prática. Em sendo assim se entenderia porque Deus não age diante da
injustiça sofrida pelo inocente. Pois Deus “tudo espera”. Esperar, com certeza,
torna quem ama um ser passivo, não reage, sequer protesta. Um cristão não
poderia, nem ao menos, buscar seus direitos na Justiça humana. É tudo de que o
mal precisa para tomar conta.
Outra situação em que há uma dicotomia. Como
seria amar assim no trabalho? Impossível. Um colega faz uma falcatrua e o
cristão silencia e, conforme, assumiria a culpa. O próprio fato de ter emprego quando outro está desempregado seria descumprimento dessa Lei.
Tem a parte “não folga com a injustiça, mas folga
com a verdade”, só que isso não explica muita coisa. Em sendo tão passivo
diante de agressões como seria esse não folgar com a injustiça? Como seria esse
alegrar-se com a verdade? Não sei. Ora, dá a impressão que é um mero
expectador. Não age, mas deseja a justiça e a verdade. Não vai brigar, mas quer
as coisas certinhas. No máximo, diante disso, o amor fica a apreciar as ações
de quem não ama. O cara mata e é perdoado? Sim, porque qualquer ação de Justiça
implicaria em punição e a punição vai contra o perdão. Para fazer a Justiça
agir há que se deixar o amor de lado.
Por fim, há atividades na sociedade impossíveis
de serem realizadas com amor: a do policial, do professor, do comerciante... Do
policial dispensa comentários. O professor não poderia aplicar reprimendas
aos indisciplinados e o comerciante não buscaria lucro e sem lucro não há
investimentos etc.
O mundo é o que é pela falta de amor. E o amor,
como está posto, tornaria as coisas ainda piores. Não se assuste. Esse papo de
amor é uma grande besteira. Não é dele que precisamos porque naturalmente vamos
fazer o bem que já fazemos. É na força coerciva do Estado em reprimir os maus
comportamentos que nossa vida fica um pouco melhor, nada muito além disso.
Encerrando o babado. Um povo amando como quer o texto Bíblico é tudo de que precisa o Poder. Isso me parece coisa bem humana. Se ainda tem alguém que fica
com papo de as pessoas se amarem... Bem, dá dó! Isso não é, nem de longe,
praticável e nem é o que faz qualquer diferença. Isso é a perda da ilusão. Os desiludidos, que perderam a ilusão, veem tudo com mais clareza.
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